segunda-feira, junho 22, 2009

E meus amigos, kd?

Levando um dedin de prosa com a vida, apareço por aqui. Sentindo falta de conversa de bar, de estar com os amigos, enfim! Mas é a vida! Cada um em seus caminhos. Uma hora agente se topa por aí. Sexta a noite escrevi umas coisas a mão pra colocar aqui. Mas a efemeridade do tempo já não deixa mais eu colocá-las aqui. Hoje o pensamento já é outro. No entanto, o que mais escrevi foi sobre uma recente peça da Denise Fraga - A alma boa de Setsuan. O que me chamou atenção foi uma reflexão da própria atriz em recente entrevista ao Jô. Lá ela dizia sobre uma situação que muito vigora por aí: o calar-se em determinadas situações. Não é novidade pra ninguém o fato de nos calarmos em certas conversas pra não causar maiores discursões. Aquela velha frase dita internamente: não vale a pena discutir por isso. Ou até mesmo você não querer opinar perante as incertezas da vida. Partindo desses pensamentos cheguei em dois textos interessantes. Um da Lya Luft e outro do Arnoldo Jabor. Eles tratam de bons temas pra se discutir tomando uma gelada com bons amigos e que, ao meu ver, tem algo relacionado com isso levantado pela Denise. Acho que alguns problemas do mundo vem por essa relação do calar-se frente aos obstáculos, ao que incomoda. No entanto, romper as barreiras do silêncio, não é uma tarefa tão fácil assim. E nisso, vamos nos acomodando com as realidades. Com essa sensação de que tudo vai bem. Espero que gostem dos textos. No mais até a próxima!

Samuel Pereira


Esse poço tem fundo?

Lya Luft


"É frágil uma democracia na qual pobres e ricos,
jovens e velhos, reagem com um dar de ombros
quando se fala nesses desmandos, nesses abusos,


nessas verdadeiras loucuras – as que sabemos e
as piores, que ainda ignoramos"


Houve um tempo em que se ensinava às crianças que, se a gente furasse um poço dias e dias e anos e anos a fio, chegaríamos ao Japão (ou era China que diziam?) e estaríamos no meio de crianças orientais de olhos puxados e costumes muito diferentes. Menina de cidade do interior, só conheci a maravilhosa cultura oriental muitos anos depois.

Adulta, descobri que a vida tem outros poços, nem todos divertidos. Um deles agora se afunda como se não tivesse chão: o poço dos escândalos nossos de cada dia, o poço da nossa desolação e dos nossos enganos. Percebo que, a pior das situações, raras pessoas ainda se dão ao trabalho de se preocupar de verdade. A maioria, talvez para suportar tantos desencantos, dá de ombros dizendo que é isso mesmo, as coisas são assim, no Brasil é assim, no mundo inteiro está ficando assim, e afinal "não tem problema".


Ilustração Atômica Studio


Propriedades produtivas são invadidas sob proteção não se sabe de quem: ninguém parece fazer nada. Congressistas e senadores fazem farras inimagináveis quando ainda acreditávamos neles: não tem problema. Mensaleiros continuam sendo processados, mas não sei que tenham perdido a honra, ou vivam execrados. Agora, no Supremo Tribunal do país, ministros batem boca diante de telespectadores atônitos: parece que perdemos o último baluarte da nossa esperança.

Mas fiquem tranquilos, não tem problema.

Não devemos nos espantar com a generalizada quebra de autoridade. Tudo numa boa, por aqui é assim. Sem stress, que dá rugas, sem exageros, que a gente vira um chato. Que povo estamos nos tornando? Ignoramos essas circunstâncias, que agora não são apenas corrupção escancarada e impune, mas falta de compostura de quem era a última instância de nossa vida problemática, derradeira inspiração para a desorientada juventude nossa. Mas não ignoramos por sermos ignorantes, e sim porque nos dizem que está tudo numa boa, e não adianta reclamar. A gente se acomoda, se distrai, olha para o outro lado, porque a capacidade de reagir nos foi lentamente, subliminarmente, retirada. Não por sermos um povo acomodado ou superficial, mas mergulhado num estado geral de desinteresse – e isso contagia feito uma nova doença, uma gripe de derrotados nem sempre suínos. Algo negativo e sombrio perpassa este país, e nem os trios elétricos nem zabumbas nem carnavais ou belas danças típicas do interior conseguem disfarçar.

É frágil uma democracia na qual pobres e ricos, jovens e velhos, reagem com um dar de ombros quando se fala nesses desmandos, nesses abusos, nessas verdadeiras loucuras – as que sabemos e as piores, que ainda ignoramos. (Pois, quanto à chamada farra das passagens, dizem os que sabem das coisas que o pior vai permanecer oculto, não por último para preservar, em alguns casos, a solidez da santa família brasileira.) A gente ou sabe ou imagina, e comenta como se fosse engraçado: quem ainda acredita nos políticos? Quem ainda tem fé nas instituições? Olhe só o que está acontecendo por aí, e nem é de hoje. Nem vai se corrigir, ao contrário: cada vez aparece algo mais sério, mais sinistro, objeto de reais ou falsas investigações tantas vezes desfocadas e ineficientes, ou aparentemente rigorosas. Sentimos uma lufada de otimismo, agora, sim, a coisa vai endireitar... mas logo se desfaz diante do comentário que vem do alto: tudo resolvido, não tem problema.

Tem problema. Tem muito problema. Não é normal, não é assim o Brasil, não são assim os brasileiros. A falta de autoridade de tantos líderes contamina feito uma gosma escura, uma doença maligna corroendo a decência neste país, tirando-nos discernimento e capacidade de julgar. Fingimos não saber, fingimos nem ligar. Aos mais simples, como às crianças e jovenzinhos, é repetido que está tudo bem, tudo em ordem. "Não tem problema." Assim, descrentes e céticos, protegem-se com um precoce cinismo, que afinal é um jeito (pobre) de sobreviver na selva moral.


Lya Luft é escritora

Fonte: Revista Veja - Edição 2111- 6 de maio de 2009.



A ideia de “totalidade” que animou a “razão humana” por milênios acaba de falecer. Acabou de morrer com o socialismo fracassado. O homem pensa como um organismo, deseja que a vida seja um corpo funcional como o nosso. Tudo aspirava a ser “um”. Toda razão sempre aspirou à totalidade.

Agora só há fragmentos. Os pensadores ainda fingem gostar do fragmentário, do caótico, do incontrolável. Mentira. Cada fragmento se reerige em totalidade. De onde falamos, quando pedimos o Bem? Falamos de uma “harmonia perdida”, como se ela fosse ainda possível, ou tivesse algum dia existido.


Só a ficção previu a ilógica do mundo atual. Kafka e Beckett previram o mundo de hoje muito mais claramente que os cientistas políticos. Disseram para Brecht: “Kafka foi o primeiro autor bolchevista”. Brecht observou: “E eu sou o último escritor católico”.

Por que praticar o Bem se ele não é mais possível? O Mal virou uma necessidade social. Não dá mais para viver sem praticar o Mal. Não dá para estragar a nossa felicidade cada vez que olhamos para crianças famintas. O Mal é um mecanismo de defesa. O Mal é sempre o ‘outro’. Nunca somos ‘nós’. Hitler nos absolveu a todos. Stálin nos fez santos.

Achamos que a “tarefa democrática” seria um subproduto do capitalismo, como se ele almejasse a diferença, a contemplação das diversidades. Doce ilusão achar que o capitalismo almeja o heterogêneo. Vejam a obviedade da crise financeira, gerada pelos velhos vícios da voracidade e do egoísmo. Sempre houve um grande “auê” com as injustiças da ditadura. Mas, e o Mal dos democratas? Estamos na era do erro inextricável. Do crime “sem criminosos”.

Nem Bem nem Mal. São as coisas que estão controlando os homens. É o CO2 que controla os governos e não o contrário. As coisas tomaram o poder. Cito Heiner Muller: “A máquina odeia o homem, pois para todo sistema de ordem ele apresenta um fator de perturbação. O homem faz sujeiras, não funciona direito. Logo, é preciso que ele se vá, o capitalismo deseja a perfeição do sistema estrutural da máquina”.

Os fiascos de hoje são defeitos de fabricação. Ou o lixo que o lixo do capitalismo gera. A gripe suína nasce de onde? Deste grande pesadelo poluído e sem controle. No Brasil, muitas catástrofes são “fora do lugar”. A evolução técnica convive com o ambiente de miséria e dá no “malfunctioning”. Explodem pela soma de novas tecnologias com o excesso de atraso: traficantes no morro com supermetralhadoras. Todos sabíamos que a bolha poderia explodir. Explodiu. Esse malogro traz uma nova era? Terrível ou não, alguma verdade vem aí. Que nova verdade será essa? A prudência, a parcimônia?

Nossa catástrofe maior é a impotência política. Há também o naufrágio da insensibilidade crescente diante do horror. Os fatos estão além da piedade. Há o tédio crescente pela catástrofe, quando a alma vira uma grande pele de rinoceronte.

Mas, há ainda um grande amor brasileiro pelo fracasso, pela falência de propósitos. Quando o fracasso acontece, é um alívio. A fracasso é bom porque nos tira a ansiedade da luta. Já perdemos, para que lutar?

O Mal do Brasil não está no assassino serial, está nos pequenos psicopatas que nos roem a vida. O Mal do Brasil não está na infinda crueza da burguesia nordestina (pior que a do Sul e Sudeste), está muito mais no seu riso, na sua cordialidade. O Mal não está na máfia das passagens aéreas no Congresso, nas roubalheiras, mas nos simpáticos jaquetões dos nossos parlamentares, em suas gargalhadas soltas.

Ao denunciar o Mal, vivemos dele. Vivemos da denúncia e com ela lucramos. Eu lucro sendo um cara “legal” que denuncia o Mal e, assim, escapo da fome, comendo a comida de quem lamento.

Como quase nada acontece no Brasil, a não ser o desatino, o erro da tentativa, o tiro pela culatra, a incompetência arrogante, quando um desastre ou escândalo acontecem, a plateia fica calma. Nossa vida fica mais real e podemos então, aliviados, botar a culpa em alguém.

E dizemos: “Viram? Nada dá certo aqui. A culpa é deles…” Eles quem? Há uma tradição de que nossa vida é um conto-do-vigário em que caímos. Somos sempre vítimas de alguém. Nunca somos nós mesmos. Ninguém se sente vigarista. Há os fiascos em preparação, como as reformas do Estado que o Congresso não deixa fazer, há as catástrofes da lentidão dos processos jurídicos, há os eternos denunciadores do fim, fotógrafos, escritores, jornalistas (eu?), gente que denuncia o mal do mundo para o mundo, denúncias que são um pleonasmo maldito para nada.

A vitória é burguesa. “Seja marginal, seja herói”. O fracasso é legal, a vitória é careta. A vitória dá culpa, o fracasso é um alívio.

A crise, a catástrofe, o bode-preto têm um sabor de “revolução”. É como se a explosão “revelasse” algo, uma tempestade de merda purificadora. Além disso, para os carbonários, depois de tudo arrasado, a pureza renasceria do zero.

O Brasil é visto como um grande “bode” sem solução – paraíso da esquerda pessimista, dos militantes imaginários. Quem quiser positividade é traidor. A Academia cultiva o “insolúvel” como uma flor. Quanto mais improvável um objetivo, mais “nobre” continuar tentando. O masoquista se obstina com fé no impossível.

A falência nos enobrece. O culto português à impossibilidade é famoso. Numa sociedade patrimonialista como Portugal do século 16, onde só o Estado-Rei valia, a sociedade era uma massa sem vida. Suas derrotas eram vistas com bons olhos, pois legitimavam a dependência ao Rei. Fomos educados para a desgraça. Até hoje somos assim, só nos resta xingar e desejar o mal do País.

Vejam como o Brasil se animou com a crise atual. Assim como o atraso sempre foi uma escolha consciente no século 19, o abismo para nós é um desejo secreto. Há a esperança de que no fundo do caos surja uma solução divina.

“Qual a solução para o Brasil ?”, perguntamos. Mas, a própria idéia de “solução” é um culto ao fracasso. Não nos ocorre que a vida seja um processo, vicioso ou virtuoso, e que só a morte é solução. Para o Bem ou para o Mal.

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