sexta-feira, março 27, 2009

Recado aos pusilânimes...


A noite não fora aquela do sono mais justo...mas enfim amanheci. E nessa aurora peguei-me pensando nos corações pusilânimes. E nisso fui atrás do poema da Cecília Meireles que tive conhecimento através da ex-senadora Heloísa Helena (saudades). Esse se dirigia aos pusilânimes. Vai aí!!!

por samuca

Fala aos pusilânimes

Se vós não fôsseis os pusilânimes,
recordaríeis os grandes sonhos
que fizestes por esses campos,
longos e claros como reinos;
contaríeis vossas conversas
nos lentos caminhos floreados,
por onde os cavalos, felizes
com o ar límpido e a lúcida água,
sacudiam as crinas livres
e dilatavam a narina,
sorvendo a úmida madrugada!

Se vós não fôsseis os pusilânimes,
revelaríeis a ânsia acordada
à vista dos córregos de ouro,
entre furnas e galerias,
sob o grito de aves esplêndidas,
com a terra palpitante de índios,
e a vasta algazarra dos negros
a chilrear entre o sol e as pedras,
na fina aresta do cascalho.
Também pela vossa narina
houve alento de liberdade!

Se vós não fôsseis os pusilânimes,
confessaríeis essas palavras
murmuradas pelas varandas,
quando a bruma embaciava os montes
e o gado, de bruços, fitava
a tarde envolta em surdos ecos.
Essas palavras de esperança
que a mesa e as cadeiras ouviram,
repetidas na ceia rústica,
misturadas à móvel chama
das candeias que suspendíeis,
desejando uma luz mais vasta.

Se vós não fôsseis os pusilânimes,
hoje em voz alta repetiríeis
rezas que fizestes de joelhos,
- súplicas diante de oratórios,
e promessas diante de altares,
suspiros com asas de incenso
que subiam por entre os anjos
entrelaçados nas colunas.
Aos olhos dos santos pasmados,
para sempre jazem abertos
vossos corações, - negros livros.

Mas ai! fechastes vossas janelas,
e os escaninhos de móveis e almas...

Escrevestes cartas anônimas,
apontastes vossos amigos,
irmãos, compadres, pais e filhos...
Queimastes papéis, enterrastes
o ouro sonegado, fugistes
para longe, com falsos nomes,
e a vossa glória, nesta vida,
foi só morrerdes escondidos,
podres de pavor e remorsos!

Vistes caídos os que matastes,
em vis masmorras, forcas, degredos,
indicados por vosso punho,
por vossa língua peçonhenta,
por vossa letra delatora...
- só por serdes os pusilânimes,
os da pusilânime estirpe,
que atravessa a história do mundo
em todas as datas e raças,
como veia de sangue impuro
queimando as puras primaveras,
enfraquecendo o sonho humano
quando as auroras desabrocham!

Mas homens novos, multiplicados
de hereditárias, mudas revoltas,
bradam a todas as potências
contra os vossos míseros ossos,
para que fiqueis sempre estéreis,
afundados no mar de chumbo
da pavorosa inexistência.
E vós mesmos o quereríeis,
ó inevitáveis criminosos,
para que, odiados os malditos,
pudésseis ter esquecimento...

Chega, porém, do profundo tempo,
uma infinita voz de desgosto,
e com o asco da decadência,
entre o que seríeis e fostes,
murmura imensa: “Os pusilânimes!”
“Os pusilânimes!” repete
o breve passante do mundo,
quando conhece a vossa história!

Em céus eternos palpita o luto
por tudo quanto desperdiçastes...
“Os pusilânimes!” – suspira

Deus. E vós, no fundo da morte,
sabeis que sois – os pusilânimes.
E fogo nenhum vos extingue,
para sempre vos recordardes!

Ó vós, que não sabeis do Inferno,
olhai, vinde vê-lo, o seu nome
é só – pusilanimidade.


Cecília Meireles
Melhores Poemas
Global Editora – edição 1997

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